terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Quando um não quer


Volta e meia leio notícias sobre casais famosos que se separam depois de anos de relacionamento. Quando são questionados sobre quem tomou a iniciativa do desenlace, a resposta quase sempre é um primor de civilidade: comum acordo. Um dia acordaram e descobriram juntos, às nove horas, 24 minutos e 15 segundos, que o amor havia acabado. Cada um puxa sua mala de cima do armário e ruma para uma nova vida. Um serviço limpo.
Sei. Nem um expert em água-com-açúcar conseguiria criar uma cena tão inverossímil. Ninguém deixa de amar o outro no mesmo instante em que deixou de ser amado. Se isso fosse possível, a palavra rejeição seria banida do vocabulário. A verdade é que sempre tem alguém que toma a iniciativa de romper, e mesmo que as coisas estejam péssimas, mesmo que não haja outra solução a não ser o divórcio, quem fala primeiro levanta mais rápido.
Comum acordo, só na hora de se aproximar. O casal se estuda, se procura, se encontra e o primeiro beijo vem com garantia de reciprocidade. Daí em diante é festa. Até que ambos, em silêncio, começam a avaliar o relacionamento. Os lábios ainda se tocam, mas os cérebros mal se cumprimentam. Cada um analisa o que está acontecendo sob um prisma absolutamente particular, até que um deles solta o verbo e se despede.
Sobra aquele que ficou quieto.
Não existe separação sincronizada, e essa talvez seja a grande dor do adeus. Quem é dispensado carrega a mágoa de não ter sido consultado, de não ter tido a delicadeza de um aviso prévio, e pior, de ver-se frente a frente com um destino que lhe foi imposto. Mesmo não havendo mais amor, o orgulho fica sempre machucado. Fim de caso é dor dividida: os dois lados sofrem com a saudade e a frustração. Mas o dono das rédeas, o que teve a coragem de deter a carruagem no meio do caminho, esse tem sua dor diluída na força que lhe foi conferida pela decisão. A combinação é cada um ir para o seu lado, mas apenas um consegue partir. O outro fica ali, parado, procurando entender a imensa distância que as palavras podem provocar.
Solução? Faro fino e rapidez. O cara diz: preciso falar com você, e você responde: sem problema, pode ficar com as crianças nas quartas e sábados. Ele diz: tenho o maior carinho por você, mas... e você emenda: eu entendo, eu também me apaixonei por outra pessoa. Isso é que é diálogo de primeiro mundo, não aquele duelo de gaguejos, acusações e histerismo. Já sabe: se hoje à noite ele vier com um papo tipo: olha, eu queria... nem deixe o safado continuar. Encerre você o assunto: pode ficar com os discos do Piazolla, mas o microondas é meu. Prevenção nunca é demais. Talvez ele queira apenas convidá-la para jantar, mas vá saber.
(Martha Medeiros)

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Por ai

E nós nunca vamos nos beijar na chuva. Eu também nunca vou calar sua boca com um beijo e nenhuma das nossas brigas vão acabar na cama. Eu nunca vou te observar enquanto você dorme e nunca vou fazer cafuné em você quando você estiver com a cabeça deitada no meu peito. Não vamos passar tardes assistindo filmes românticos debaixo das cobertas e comendo brigadeiro. Também não vamos passar madrugadas acordados conversando. Nossos planos não vão se concretizar. Eu não vou ficar com vergonha conhecendo sua família. Não vamos contar aos nossos filhos a longa e estranha história sobre como nos conhecemos. As pessoas não vão olhar pra nós e falarem sobre como nós somos bonitinhos juntos. Não vamos discutir sobre quem vai levantar pra apagar a luz do quarto. Não vamos ter um futuro. Tudo isso poderia ter acontecido, mas não vai. Porque nós dois fomos feitos pra nos conhecermos, nos apaixonarmos, mas não pra ficarmos juntos.

Vinícius Kretek

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Mulher de um homem só


Ela é como o urso panda, está quase extinta do planeta. Quando alguém a ouve dizendo “sou mulher de um homem só”!, corre para o celular mais próximo e chama a imprensa para documentar. Quem é, afinal, essa mulher tão rara?
A mulher de um homem só casou virgem com um escritor que detesta badalação. A última festa em que ele compareceu foi a do seu próprio casamento, a contragosto. Ele só gosta de música barroca, uísque e poesia. Não quis ter filhos. É um homem terrivelmente só que se casou apenas para que alguém cozinhasse para ele, pois odeia restaurantes.
A mulher do homem só tenta animá-lo. Convida-o para subir a serra e comer um fondue. O homem faz que não com a cabeça. A mulher convida para ir a uma feira de antiguidades. Ele dá um sorriso sarcástico. Ela convida para ir na Casa Cor. Ele tem espasmos. Ela convida para um teatro. Ele pega no sono antes que ela diga o nome da peça.
O homem só gosta de ficar em casa. Não vai ao cinema, nem a parques, nem a bares. Não visita ninguém. Não votou na última eleição. Não comparece às reuniões de condomínio. Tem alergia a gente.
A mulher do homem só tentou festejar os 50 anos dele. Convidou os poucos conhecidos do marido: um irmão, o editor e a mulher deste. Comprou cerveja, colocou o CD do Paulinho da Viola e flores nos vasos. Os convidados chegaram e se foram sem ouvir a voz do homem só. Ele apenas resmungou um obrigado quando recebeu um livro do editor e disse qualquer coisa inaudível ao ganhar meias do irmão. Passou calado a noite inteira. Quando pediu licença para ir ao banheiro, não voltou mais.
A primeira vez que a mulher do homem só disse “sou mulher de um homem só” foi para o motorista de táxi, que ficou muito impressionado. Ela era jovem, bonita, mas tinha uma tristeza comovente no olhar. Era a última corrida dele e, impulsivamente, convidou-a para uma caipirinha. Ela aceitou e, pela primeira vez em muitos anos, teve uma noite animada.
A segunda vez que ela disse “sou mulher de um homem só” foi para o vizinho do sexto andar. Estavam sozinhos no elevador e ele fingiu não ouvir. Nunca haviam trocado nem um bom-dia, quanto mais uma confidência. Mas ela repetiu: “sou mulher de um homem só”. Dessa vez falou de um jeito tão carente que ele se viu obrigado a tomar uma providência. O sexto andar acabou malfadado no prédio.
A mulher do homem só, então, passou a ter a agenda cheia: o professor de computação, o gerente do banco, o dono do posto de gasolina. Vivia para cima e para baixo com seus novos amigos: cinema, shopping, vernissages. Não corria o risco de encontrar o marido em nenhum desses lugares. Começou a usar decotes, maquiagem e ria alto. Nunca se sentira tão feliz. Surgia cada dia com um parceiro diferente nas festas, nas inaugurações de lojas, nos passeios pelo mercado público. Ganhou má fama. E quanto mais o povo falava, mais ela desdenhava. Ninguém fazia a mínima idéia do que era ser mulher de um homem só.

Martha Medeiros – Agosto de 1997