segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Por ai

Comunicado ao amor fugaz
João Campos Nunes

Todo amor merece uma noite inteira de sexo.
E que faça frio!
Pois todo amor sabe fazer
do cio de um singelo edredom,
um universo.
Que as bocas mal emitam som,
falando tão baixo que se confundam
os verbos com os gemidos,
e os adjetivos surjam como sorrisos à francesa, e
ao invés de vírgulas
usem-se mordidas nas orelhas
para que assim se excitem os ouvidos.

Todo amor merece uma noite inteira de sexo. ´
E que falte luz!
Pois todo amor sabe descortinar
no escuro a sua volta, o futuro.
E que as pupilas se dilatem tanto
que seja possível, aos dois nus,
enxergarem-se azuis,
apenas para que se confirmem
exatamente aonde gostariam de estar,
e se ainda não se crerem lá,
eles tateiem-se até se acharem,
perdidos enfim.

Todo amor merece uma noite inteira de sexo.
E que haja vinho!
Pois todo amor sabe encontrar
nas línguas enroladas, sobriedade.
E que, altos, apoiem o rosto um no outro,
e se guiem pelos mamilos
e se escorem pelos quadris, e,
desinibidos, unam-se tão forte,
entrem-se tão fundo,
caibam-se tão dentro,
que já não haja descaminho.

Todo amor merece engravidar a manhã de amor laranja
pra então adormecer
com os olhos pesados de paz.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Pense


"A poesia deixa algo em cada leitor: uma sílaba, uma metáfora, um conceito, uma visão do universo. Cada verso é de natural ambíguo, tem duas caras, como certas pessoas que eu conheço, ou cem, ou mil. As palavras não dispõem de apenas uma carteira de identidade; usam várias, como os ladrões ou os contrabandistas. Costumam sair disfarçadas, ou incógnitas, ou fantasiadas como no Carnaval. O demónio da polissemia que habita nelas como uma segunda natureza, torna-as verdadeiros camaleões, que tomam a cor da paisagem ou do instante. São volúveis. Assim, é claro que, antes de variar de leitor para leitor, a Poesia, que se nutre da ineficácia ou da imprecisão das definições que a circundam, varia de poeta para poeta. A cada um exibe uma face particular."

(Ledo Ivo in: A Fábula do Vento)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Que eu possa...


“Que eu possa respeitar opiniões diferentes da minha. Que eu possa me desculpar antes do ódio. Que eu possa escrever cartas de amor de repente. Que eu possa viajar para adorar a distância. Que eu possa voltar para dizer o que não tive coragem. Que eu pense em meu amor ao atravessar a rua. Que eu pense na rua ao atravessar o amor. Que eu dê conselhos sem condenar. Que eu possa tomar banho de cachoeira. Que eu seja a vontade de rir. Que eu possa chorar ao assistir filmes. Que eu não seduza para confundir. Que eu seduza para iluminar. Que eu não sacrifique a confiança pela covardia. Que eu tenha dúvidas, melhor do que certezas e falir com elas. Que eu faça amizades falando do tempo. Que eu possa amar mais sem contar as horas. Que eu use somente as palavras que tenham sentido. Que eu prove a comida nas panelas. Que transforme a raiva em vontade de me entender. Que eu possa soltar os vaga-lumes que prendi em potes. Que eu me lembre de ser feliz enquanto ainda estou vivo.”

—(Carpinejar)